LF Bittencourt

Como eu aprendi a programar

Esse post é uma transcrição aproximada da minha palestra no 19º Encontro Locaweb Porto Alegre, que aconteceu no dia 18 de maio de 2017.

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13 anos depois, fazendo uma das apresentações do RSJS 2017

Cachoeira do Sul é uma pequena cidade no interior do Rio Grande do Sul. É onde nasceram Adão Iturrusgarai, Alexandre Garcia, Régis Rösing e a Miss Brasil 1972 Rejane Goulart, mas não é particularmente conhecida por formar programadores. Em 2004, quando aprendi a programar, os destinos mais comuns para jovens de 17 anos eram ser cobrador de ônibus, empacotador de supermercado ou trabalhar em uma das indústrias da cidade.

Contra todas as probabilidades, sou cachoeirense e programador.

Por mais estranho que pareça, tudo começou com um concurso de monografias políticas em 2002. Um partido político (não convém nominá-lo) pagaria R$ 1500 ao estudante que escrevesse o melhor trabalho sobre o político cachoeirense João Neves da Fontoura, membro da Academia Brasileira de Letras que chegou a ser embaixador em Portugal e poderia ter sido presidente da república. Para um adolescente pobre do interior, aquele prêmio era uma fortuna.

Mergulhei na história de João Neves assim que minha inscrição foi aprovada. Conversei com historiadores e até com um sobrinho-neto que me emprestou livros raros. Caminhava até a biblioteca pública da cidade quase todos os dias, 11 quilômetros a pé para economizar os R$ 150 de ajuda de custo que recebemos durante três meses: era o pagamento da digitadora.

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Pura alegria ao ganhar o concurso

No fim das contas, meu esforço foi compensado: venci o concurso, fiz uma espécie de discurso na câmara de vereadores e levei o cheque para casa. Tinha certeza absoluta do que faria com ele assim que a segunda-feira chegasse: comprar um computador.

Foi nesse computador, um Celeron 400 de segunda mão, que descobri como funcionavam as páginas que eu acessava na Internet. Criava os arquivos HTML no Notepad e aprendia basicamente por tentativa e erro: alterava uma tag, via o que mudava na página e assim por diante.

Naturalmente, a primeira linguagem de programação que aprendi foi JavaScript. Na época, aliás, ela sequer era classificada como linguagem de programação: para as revistas e sites especializados, era uma “linguagem de scripting”. Classificações à parte, o fato é que esse foi meu primeiro contato com um universo incrível onde tudo (quase sempre) segue um padrão, tem lógica, é previsível.

Talvez eu não soubesse o nome, mas já sabia o que queria ser: programador.

O próximo passo foi o server-side. PHP, mais especificamente. Como o pulso único da internet discada durava apenas da meia-noite às 6:00 da manhã, baixei todo o manual da linguagem em formato Compiled Help File do Windows. Dessa forma, conseguia consultar a documentação de todas as funções durante o dia, o que não deve fazer nenhum sentido para qualquer um que tenha aprendido a programar em tempos de banda larga.

Depois veio um período de drogas mais pesadas: comecei a mexer com Flash e ActionScript e — pasmem — até a fazer layouts de gosto duvidoso no Fireworks. Foi graças a esse perfil “webtudinho”, porém, que fiz meus primeiros freelances para um time de futebol, uma emissora de rádio e um jeep club da cidade. Fazia registro do domínio, “design”, frontend, backend e publicação, tudo com muitas tabelas, contador de visitas e aviso de resolução recomendada. O preço? R$ 400 cada.

Em 2005, veio outro marco importante: consegui uma bolsa de estudos integral para cursar ciência da computação na ULBRA, em Canoas. Era uma ótima notícia que trazia uma preocupação de brinde, pois eu precisaria mudar de cidade e isso só seria possível se eu conseguisse um estágio ou emprego, o que aconteceu de uma forma bem inusitada para a época: uma entrevista por telefone. Como teste prático, combinamos que eu faria a codificação frontend de um projeto criado para uma grande marca de calçados. O resultado agradou os jovens donos da agência e assim consegui meu primeiro estágio em tecnologia antes mesmo do primeiro dia de aula.

Em 18 de fevereiro de 2006, encaixotei meu computador e umas poucas peças de roupa e me mudei para a região metropolitana de Porto Alegre. Estudaria e trabalharia com computação, sem Stack Overflow nem um décimo das ferramentas que existem hoje. O resto é história.

Versão estendida

Sempre contei essa história com muito orgulho. Acho bonito como consegui me formar e trabalhar com o que amo a despeito das adversidades. Tem um quê de jornada do herói e outras pessoas podem até se identificar com algumas partes, mas aqui está a verdade: contada assim, essa história deixa de fora muitas pessoas e fatos importantes.

Para começar, meu interesse por computadores não surgiu do nada. Minha mãe financiou vários cursos de informática, coisas chamadas “ABC do Micro”, “Windows 98”, “Word 97”, “Internet” (sim, havia um curso que ensinava às pessoas como usar a Internet), “Page Maker”, “Access” e “Delphi”. Por mais que eu não lembre bulhufas de Access e Delphi, acabamos de descobrir um contato anterior com banco de dados e programação, certo? Um contato cuidadosamente cortado da primeira versão da história.

Computadores não eram objetos tão inatingíveis. Antes de comprar o Celeron 400, podia usar os micros do pequeno laboratório de informática da escola ou da mesma biblioteca na qual eu pesquisava para a monografia. Eram ótimas oportunidades de descobrir como funcionava aquela máquina maravilhosa.

Falta mencionar ainda que consegui estágio em um dos dois jornais na cidade logo após o concurso de monografias. A bolsa em si era irrisória, mas o trabalho não me deixava completamente exausto e havia banda larga disponível o dia inteiro, ou seja, a história da conexão discada é um exagero romântico. Aproveitava todos os intervalos da minha rotina de repórter mirim para pesquisar sobre as coisas que estava aprendendo.

Foi um colega do jornal chamado Marcelo Faccin, aliás, quem me explicou o que é HTML e como aquele punhado de tags dá vida à web. Mais ou menos na mesma época, um colega de escola chamado Adão Maurício me deu uma cópia pirata do famigerado Dreamweaver e me ensinou a editar o código e usar o modo visual para ver as alterações. Aquilo explodiu minha cabeça!

A partir daí, devo praticamente tudo que aprendi ao fórum do Webmasters Online. “Webmaster”, crianças, era o termo da época para full stack developers, e o WMO era o lugar certo para tirar e responder dúvidas de desenvolvimento, um precursor honrado do Stack Overflow.

Eu era um completo amador fazendo perguntas completamente amadoras, mas sempre havia alguém disposto a responder pacientemente todas essas dúvidas. Essas pessoas, muitas quase tão amadoras quanto eu, saíram do anonimato dos nicknames e tornaram-se nomes conhecidos e até mesmo colegas de trabalho especialíssimos, como a Maria e o Mozart Petter.

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Aprendendo um dos fundamentos básicos da programação no WMO

Os freelas só aconteceram graças ao estágio no jornal, um ótimo lugar para conhecer pessoas e fazer o bom e velho networking. Todos os trabalhos vieram de contatos que fiz por lá: o gerente financeiro do jornal também era executivo do clube de futebol, uma colega de trabalho era filha de um dos membros do jeep club e a emissora de rádio era uma empresa parceira.

Devo a bolsa de estudos — e só vejo desta forma hoje, com meus 30 e poucos anos — a alguns professores do ensino médio que sempre nos incentivaram a continuar estudando. Não importava se estávamos em uma escola pública: tínhamos que nos preparar para o ensino superior. Muita gente parou de estudar por ali mesmo, é verdade, mas alguns alunos compraram a ideia. Foi graças a esses professores que me formei.

Aliás, o próprio Prouni, o programa do governo que me deu a bolsa, foi uma oportunidade que as gerações anteriores de estudantes não tiveram. E mais: o programa ainda era pouco conhecido e menos concorrido. Além de pessoas e oportunidades, às vezes é preciso um pouquinho de sorte.

Por fim, lembra da entrevista por telefone? Foi indicação da mesma Maria que conheci através do WMO.

O mito do programador autodidata

Pula para 2017.

Acredito que estamos vivendo um período muito especial na história da computação. A revolução da inteligência artificial está apenas começando, mas já dá para vislumbrar um futuro em que teremos assistentes pessoais para quase tudo e os trabalhos puramente operacionais serão feitos por robôs. Dizem até que nós, programadores, seremos os próximos trabalhadores de colarinho azul — a primeira geração de operários cuja função será exclusivamente intelectual e criativa.

O efeito colateral dessa expansão meteórica da indústria é que não estamos formando novos programadores no ritmo necessário. Longe disso: só nos Estados Unidos, há meio milhão de vagas abertas e menos de 40 mil novos graduados para preenchê-las. Como essas posições são críticas para os negócios, a escassez vira um freio indesejado para a economia.

Tenho a impressão de que mesmo aqui no Brasil há mais oferta do que procura, um sinal claro de que precisamos, como indústria, de mais programadores, pessoas de todos os gêneros, idades e origens — não só aquelas que se encaixam no estereótipo do sujeito com poucas habilidades sociais, introvertido e superinteligente. Só os nerds não bastam.

Nós também acreditamos nisso! ❤️ #19elw #EncontroLocaweb pic.twitter.com/3tye0riWrl

— Locaweb (@locaweb) May 18, 2017

A solução de como atrair e acolher esses novos perfis passa inevitavelmente por nós, os mentores naturais da próxima geração de programadores. Estou recontando minha própria história de uma forma menos heroica e mais realista porque acredito que assim sou um modelo mais útil e acessível aos futuros profissionais. Minha esperança é a de que pessoas com histórias de vida parecidas com a minha percebam que podem contar com a mesma ajuda e ter até mais oportunidades do que eu tive.

Minha carreira sempre foi uma escada, não uma plataforma mágica. Houve pessoas dispostas a ajudar em cada degrau, e foi graças a essas pessoas que consegui aproveitar as oportunidades que apareceram. Por isso, não faz o menor sentido me intitular “autodidata”, porque autodidata é quem aprende sozinho, sem professores ou mentores, e eu sempre tive muitos professores e mentores. Não é só um preciosismo linguístico, mas uma forma de reconhecer esse suporte social e mostrar que a computação pode ser receptiva e amigável.

Os programadores de amanhã são como crianças com ouvido absoluto ou uma habilidade natural para os esportes: precisam apenas de incentivo e oportunidades para se desenvolver. Sem isso, nem os talentos mais raros conseguem ir em frente. Pessoalmente, quero que cada vez mais pessoas conheçam esse mundo fascinante pelo qual somos todos apaixonados, onde criamos coisas incríveis e inventamos o futuro.

E que nesse futuro eu possa escrever um novo artigo, contando que Cachoeira do Sul já não exporta apenas jornalistas, cartunistas e misses, mas também programadores e programadoras.

Esse post foi inspirado pelo ótimo I am going to stop saying I taught myself programming when I was 10 and maybe you should too, de Felienne Hermans.

Written on May 20, 2017.